Leituras & Comentários de Setembro

Como estas parecem ter sido as únicas coisas que tenho escrito ultimamente, pensei que seria interessante juntar tudo em um lugar só.

Foto da Gato Sem Rabo, livraria especializada em escritos de mulheres, que fica na Vila Buarque, em São Paulo.

Em uma noite de setembro, fui com algumas amigas à uma livraria em São Paulo conhecida por focar exclusivamente em livros escritos por mulheres. O fato de o nome ter sido inspirado em um dos livros que figura na minha tríade de favoritos me pareceu um motivo forte para fazer uma vista. Também nesta noite em específico acontecia um encontro para discutir o lançamento da edição de Savannah Bay, de Marguerite Duras, uma das minhas autoras favoritas – o que com certeza era outro. O encontro aconteceu. Infelizmente enquanto nós nos deixávamos seduzir pelo vinho e a massa napolitana da pizzaria na esquina, responsável por nos convencer a estender a conversa. Neste dia, não comprei a nova edição de Duras, nem ouvi a conversa sobre seu livro; mas conheci Didion e convenci uma amiga a voltar para casa levando na bolsa um dos meus livros de cabeceira (só vantagens). Um comentário sobre este primeiro pode ser encontrado na sequência deste textinho, junto com outros, que não tem nada a ver com ele. Eles foram publicados primeiro no Goodreads, na tentativa ilusória de retomar o ritmo e atingir a meta de leitura que no começo do ano registrei no site. Em setembro, eu acreditava possível. Em outubro, já não tenho mais muitas esperanças. Mas pelo menos li umas coisas legais.

The Complete Maus by Art Spiegelman

My rating: 5 of 5 stars

Um dos episódios mais brutais da história da Humanidade contado de forma afetiva e extremamente humana.

A vida sempre toma o partido da vida, e as vítimas levam a culpa. Mas não foram os melhores que sobreviveram ou morreram. Foi aleatório.

Maus é uma graphic novel de Art Spiegelman originalmente publicada na revista Raw. Nesta edição, reúne em uma obra única os dois volumes que contam a experiência de Vladek, seu pai, durante a Segunda Guerra Mundial.

Na capa, a imagem de dois ratos de aparência assustada se sobrepõe a uma outra, um gato com traços de Hitler, cujas linhas de fundo formam uma suástica. Estamos sob o domínio da Gestapo, na Alemanha nazista e territórios anexados. No livro, os ratos são a escolha estilística de Spiegelman para representar os judeus, enquanto os alemães serão desenhados como gatos. Outros animais também se juntam ao conjunto: os poloneses como porcos e os americanos, como cachorros.

Ao pegar este volume em mãos pela primeira vez, confesso que esperei saltarem palavras como Partido Nazista ou Terceiro Reich. O extermínio ético sendo contado a partir de politicagens e outras leis, com todos aqueles termos que se destacam quando ouvimos falar sobre o Holocausto. Mas, para além da imagem do gato com bigodinho à qual somos introduzidos na capa, a narrativa parece tomar um outro rumo. Nos distanciamos das batalhas, dos bombardeios e ocupações. A história contada por Art é, sobretudo, sobre outra coisa. Ou outro alguém. Vladek, seu pai. Anja, sua mãe. E outros nomes que, ainda que de passagem, representam histórias reais de pessoas reais, que fizeram o possível para viver e sobreviver à concreticidade dos acontecimentos.

A narrativa se divide em duas épocas: o presente de Vladek, um homem normal, sovina e já um pouco rabugento que vive em Rego Park, na cidade de Nova Iorque, com sua companheira, Mala; e as memórias do seu passado, reconstruídas entre cafés, remédios e caixas de cereais meio abertas, relatadas nas visitas de seu filho e atravessadas pelos diversos elementos que uma relação entre filho e pai pode vir a movimentar.

No presente narrativo, cria-se uma moldura um tanto metalinguística, na qual o quadrinista descreve a experiência de entrevistar seu pai para um projeto que vinha desenvolvendo, uma história em quadrinhos sobre o Holocausto.

O relato de Vladek retorna aos anos que antecederam a ocupação alemã, em um contraste chocante entre a posição da família no pré-guerra e o destino de muitos de seus membros nos campos de concentração nazista. O que difere, no entanto, este de tantos outros relatos que encontramos nos livros de História é justamente o seu caráter real. Não no sentido fatídico e documental do termo, mas nas linhas afetivas que o constroem, onde há espaço para os eventos, mas também para as subjetividades que os entremeiam. Não se fala especificamente sobre datas ou acontecimentos pontuais – o próprio conceito de tempo é desconstruído, destruído da perspectiva de Vladek – mas sobre os dias e as estratégias para sobreviver a eles enquanto todo o resto seguia acontecendo do lado de fora.

A relação de Art com o pai se constrói sob o signo de culpa, marcada pelo fato de ter uma vida confortável, distante dos horrores vividos por seus antepassados. Apesar disso, também se delineia de forma orgânica: com brigas e desentendimentos, com a falta de paciência de Art, com a personalidade difícil de Vladek. Ao criar o perfil do pai, Art escolhe retratar aspectos familiares, com os quais cresceu e que muitas vezes reprova, ao invés de simplesmente encaixá-lo no imaginário da vítima de uma atrocidade, que automaticamente se torna frágil e com a qual se deve adotar uma atitude condescendente. No lugar disso, remarca a sua personalidade e seus traços atuais, muitas vezes também falhos. Um exemplo é a passagem na qual Vladek age de maneira racista após Françoise aceitar dar carona a um homem negro, ao qual se refere pejorativamente como schwartser. Ao ser reprimido pela nora, que aponta a contradição em ele, uma vítima do antissemitismo, adotar uma atitude como esta, diz que “não se pode comparar, os schwartsers e os judeus”.

Enfim o livro é publicado e a atenção recebida por ele também se torna tema dos quadrinhos. Art descreve o seu bloqueio e a crise que o desencadeia em uma visita ao seu psiquiatra, um tcheco que também sobreviveu à Auschwitz, trabalhando o sentimento de culpa, a raiva e a relevância de se contar tais histórias.

“- Tentei ser justo sem omitir minha raiva (…) Por mais que eu faça, parece pouco em comparação com sobrevier a Auschwitz.
– Mas você não esteve lá… Esteve em Rego Park.”


Igualmente sensível e brutal, este é um livro obrigatório para todos que se interessam por histórias sobre a Segunda Guerra Mundial e sobre o Holocausto. Mesmo para aqueles que não gostam de histórias em quadrinhos. Uma leitura que toca e que faz refletir.


Fundação by Isaac Asimov

My rating: 3 of 5 stars


12.000 anos se passaram desde o início do Império Galáctico; e sabe-se lá quantos mais desde a nossa era, dos chamados povos primitivos. A Humanidade conquistou o universo e se espalhou sobre ele. Dominou mundos inabitados, muitas vezes inóspitos, e conseguiu transformá-los em um lar. E mesmo assim, sua organização continua a mesma. Politicagens, golpes, subornos, manipulações e disputas de poder; um universo governado por homens, em que apenas homens têm protagonismo (a escassez até mesmo de personagens femininas, quem dirá de seu protagonismo, é um ponto a ser observado). É sobretudo uma história política, contada de uma forma impessoal colocada no imaginário de naves e planetas. Os saltos temporais também a tornam um pouco cansativa: com exceção de Hari Seldon, a única constante nas trezentas e poucas páginas que formam este primeiro volume, todos os outros são nomes passageiros, que certamente desempenham um papel no plano geral, mas que não se prendem a ele. Depois de um certo ponto, parece claro que a História está definida, a única coisa que resta a fazer é esperar pela próxima Crise Seldon.

Algumas jogadas, no entanto, são bem interessantes: a substituição do termo “deus” em algumas expressões, como “Sabe-se lá o espaço” ou “Pelo Espaço! / Pela Galáxia!”; a ideia de transformar a psicologia em uma ciência exata.

Não é um mau livro, mas não é exatamente o que estava esperando deste que é considerado um dos maiores clássicos de ficção científica. Lerei o resto da trilogia, mas já sem muitas expectativas.


Noites Azuis by Joan Didion

My rating: 5 of 5 stars


Este é um comentário escrito sobretudo com a emoção, sobre um livro que me tocou em lugares que não imaginei serem tão sensíveis, que me fez sentir e refletir de maneiras inesperadas.

Em Noites Azuis – este que foi um dos últimos livros de Joan Didion e também o primeiro que li dela -, a autora trabalha um assunto que assombra toda mãe: a morte de um filho. Quando o comprei, às cegas, meio que movida majoritariamente pela vontade impulsiva de ler algo da autora, não imaginei que era essa a premissa; e por um momento não tive certeza de que iria terminá-lo.

Mas a leitura fluiu como uma conversa íntima com uma amiga que conheceu as suas dores e resolveu aceitá-las. A maneira como Joan lida com a perda – de Quintana, mas também de John e, ao que parece em alguns momentos, também um pouco dela mesma – faz parecer que a morte nos é intrínseca, ela está lá, à espreita, esperando para acontecer. O que resta, depois, é uma coleção de memórias: as flores de noiva, a tatuagem visível da filha ou o salto vermelho de seus sapatos louboutin, os momentos compartilhados nos quartos de hotel, em uma infância atípica, mas detentora de tantas lembranças…

Então, a narrativa da morte torna-se também a narrativa de uma vida; sobre como esta vida, a vida de um filho, atravessou a sua. Sobre como este atravessamento a marcou – do momento do encontro com o Doutor Blake que tinha uma linda menininha para apresentá-la ao momento em que se vê sentada na antessala de um hospital esperando para receber o que parece ser o diagnóstico de sua « velhice ».

Este, também, é um assunto que me tocou muito. A maneira como Joan Didion fala sobre a velhice. O fato de Joan Didion falar sobre a velhice. O fato de se colocar como uma mulher de 75 anos. Uma mulher que se percebeu com 75 anos, sem ter se dado conta de que eles haviam chegado, talvez sem precisar se dar conta de que eles chegavam.

Sobre a velhice, ela escreve (e entre as muitas marcações que fiz nesse livro, acho que esta, embora um pouco longa, deve ser compartilhada):

« O envelhecimento e seus sinais continuam sendo os eventos mais previsíveis da vida, contudo também continuam sendo questões que preferimos deixar intocadas, inexploradas: já vi lágrimas inundarem os olhos de mulheres adultas, mulheres amadas, mulheres de talentos e conquistas, porque uma criancinha na sala, quase sempre uma sobrinha ou sobrinho querido(a), as havia descrito como “enrugadas” ou lhes havia perguntado quantos anos tinham. Quando nos fazem esta pergunta, sempre nos sentimos arrasadas com sua inocência, de certa maneira envergonhadas pelo tom límpido com que é feita. O que nos envergonha é o seguinte: a resposta que damos nunca é inocente. A resposta que damos é confusa, evasiva, até mesmo culpada. » Por que nos culpamos por envelhecer? Por que nos enfiamos em um molde de performance e produtividade que só é válido em uma certa idade?

Por fim, antes de terminar, gostaria de ressaltar que em livros como este, o nome da tradutora deveria vir assim, na capa, em um lugar mais ou menos de destaque, porque a tradução de Ana Carolina Mesquita foi tão importante quanto a própria escrita para fazer com que eu sentisse este livro. Talvez ler um livro assim tão intenso na minha língua materna fosse o respiro que eu precisava; talvez seja esta a razão pela qual mergulhei tão intensamente nele. Porque em português, retirada a barreira da linguagem, sobra espaço pra outras análises. Mas este é um assunto pra uma outra reflexão.

Feliz desta descoberta e ansiosa por descobrir novas coisas da autora.


L’Amant by Marguerite Duras

My rating: 4 of 5 stars


« Une histoire d’amour », ça se dit partout. Je ne le dirais pas. C’est moins une histoire d’amour que l’histoire d’un amant. De l’amant, celui qui donne titre au livre, et autour duquel toutes les autres thématiques se déroulent.

Ces sont nombreux les éléments explorés par Duras dans ce livre. Des découvertes de toutes sortes. Toujours liées à lui, à la figure de l’amant.

L’entendement de soi par rapport à la découverte de son corps et de sa sexualité. Sa première fois avec un homme et les désirs que ce corps est capable de ressentir et de reproduire. Le délire lesbien avec Hélène L., qu’elle souhaitait donner à son amant juste pour savoir à quoi ça goûtera.

L’identification de la marque de la folie qui retombe sur sa famille, surtout sur sa mère, et les relations qui en découlent.

« Je vois clairement la folie pour la première fois. Je vois que ma mère et clairement folle. Je vois que Dô et mon frère ont toujours eu accès à cette folie. Que moi, non, je ne l’avais jamais encore vue. »

L’opportunité d’échapper de cette famille, de cette folie, « d’aller à l’encontre de l’interdit » où se trouve l’amour de l’amant, l’amour comme un acte qu’elle aimera faire depuis son premier amant, depuis la découverte charnelle de l’amour.

Aussi des indices, comme d’habitude chez Duras, de sa connexion avec l’écriture, l’acte d’écrire et ses processus. L’écriture chez Marguerite est dépeinte presque comme une addiction ; quelque chose de laquelle elle ne peut pas échapper ; sa destination et le but de sa vie. Là, elle affronte sa mère, elle l’a dit : « Je veux écrire. Déjà je l’ai dit à ma mère : ce que je veux c’est ça, écrire (…) Je lui ai répondu que ce que je voulais avant toute autre chose c’était écrire, rien d’autre que ça, rien. »
Plus tard elle écrira : « Écrire, c’était ça la seule chose qui peuplait ma vie et qui l’enchantait. Je l’ai fait. L’écriture ne m’a jamais quittée. »

La première fois que j’ai pris ce livre à lire, j’étais motivée par une passion soudaine des écrites de Duras. De son essai, Écrire, et de sa relation avec l’écriture. Cette fois-ci, je l’ai lu avec un autre regard et d’autres expériences. Il m’a semblé facile – et facile n’est pas un adjectif que j’utiliserais pour décrire Duras – comme si l’histoire de cette femme était la seule chose dont j’avais besoin en ce moment précis. Ce classique, je le recommande à tous ceux qui ont déjà eu contact avec l’écriture de Marguerite, et aussi à ceux qui veulent la découvrir. Son style caractéristique est manifesté partout. Tout en lui étonne.


Londres

Fotografar em filme é se colocar em um lugar meio fora do tempo. Postar a neve em pleno verão europeu. Redescobrir o verão quando faz 10ºC em São Paulo. Resgatar memórias engavetadas de uma viagem de seis meses atrás – e ainda assim, demorar um mês inteiro pra fechar o ciclo. Desculpa. Eu queria ser mais engajada. Juro.

Mas Londres merece o esforço. Londres. A cidade de tijolinhos terracota que visitei em três dias frios, chuvosos e cinzas. Como tinha que ser. Onde, contrariando todas as expectativas, comi comidas ótimas: a clássica meat pie no pub mais simpático da cidade e o english breakfast (que não foi um breakfast mas com certeza bem english) em um café igualmente agradável. Encontrei os primos do Fofinho, um Van Gogh e uma representação meio pop art da Billie Holiday no banheiro de um bar que servia drinks em dobro. E entre esquilos, os clássicos ônibus de dois andares e livrarias gigantes – cheias de originais e traduções inesperadas para o inglês – em Londres também descobri que, embora os encontros calorosos e os bons momentos descobrindo a cerveja local na companhia de nativos (ou naturalizados, ainda que só por um momento) sejam sempre muito bem-vindos, eu gosto mesmo de viajar sozinha.

Sozinha, posso escolher não enfrentar a multidão de turistas reunida nos portões do Palácio de Buckinghan só para ver os guardas fazerem uma dancinha. Posso priorizar uma caminhada em ruas aparentemente menos importantes – e, therefore, vazias – e esperar longos minutos sob olhares de estranhamento pra fotografar uma londrina que passa de bicicleta. Posso jogar uma rota longa e potencialmente confusa no maps para chegar a um café atravessando certos lugares históricos. Ou optar por ver o Big Ben e sua torre, mas não passar pela ponte de Londres. E no fim, refazer algumas vezes o mesmo caminho sob chuva porque decidi no último minuto que precisava visitar a National Gallery.  

E nas entrelinhas do que manda o roteiro e do que de fato acontece nos momentos aborrecidos do cotidiano, penso também que posso, de certa forma, viver a cidade. Não nos elementos que se multiplicam em um imaginário cultural que parece ter saído diretamente de uma produção da BBC; mas nos prédios que fora das fotos se tornam apenas casas, às vezes com alugueis exorbitantes que encarecem toda a vida a sua volta. Nos clássicos ônibus de dois andares que não são mais do que ônibus; e circulam a cidade recolhendo passageiros cansados de um dia cheio, que talvez só queiram sentar em um pub e comer a torta do Saul sem ter que ouvi-lo explicar o que são mashed potatoes para uma turista que mal fala inglês. Num dia de sol no St. James Park, fugindo das aglomerações só para observar esquilos e patos fazerem o que esquilos e patos normalmente fazem. Ou numa noite-de-jazz-que-acaba-se-tornando-uma-noite-de-balada, que parecia o final perfeito para nossa viagem, não tivéssemos esquecido de adicionar à equação o fator voo em um aeroporto mais ou menos impregnado por um certo mau humor inglês. Nós já não somos tão jovens.

Thank you, London. It was great.

A morte é a vida em suspensão

uma visita ao túmulo de Balzac, no cemitério Père-Lachaise

Um homem morreu enquanto corria. Tinha cinquenta e poucos anos. Deixou a esposa preparando o almoço. Na mesma rua, três vizinhos foram internados. Meu pai era um deles. Era saudável. “Sem comorbidades”. Tinha certeza de que voltaria para casa. Mas não voltou. Um dia depois de sua morte, eu recebi as condolências e alguém enviou um hamburguer para minha casa. Neste dia, 2.286 pessoas morreram de uma doença para a qual existe vacina.

A morte é a vida em suspensão. Falamos muito sobre ela. Histórias como estas são trazidas à mesa nos almoços de domingo por alguém que ouviu dizer. “É fácil reconhecer a família, rostos afobados que saem do carro sem virar a chave”, ela diz, enquanto pega outro pedaço de pão. “A mulher poderia ter envelhecido alguns anos naquele segundo”. A morte virou cotidiano. Nos habituamos a ela.

Alguns anos mais tarde, alguém certamente faria um documentário sobre a pandemia de COVID-19 que assombrou o mundo na década de 2020. O enquadramento da tela mostraria homens de jaleco colocando alguma coisa em um tubo de ensaio. Então, se falaria sobre a corrida das vacinas, talvez sobre o número crescente de mortes ou as declarações infelizes de alguém em um alto cargo do governo. Mas ninguém fala sobre a espera. Sobre os dias que se arrastam e todo esse tempo no meio.

 O assunto é escravidão. Lemos um livro sobre isso. Conhecemos os horrores da época. Mas não estamos lá. O assunto é a peste. Vemos um filme sobre isso. Corpos empilhados no meio da rua. Mas não estamos lá. O assunto é a guerra. Assistimos a um documentário. As ruínas da cidade, os bombardeios, a fome. Mas não estamos lá. Há um abismo entre o que sabemos e o que, de fato, conhecemos. Do conforto de nossos lares, divagamos: “como era possível viver assim? Eu não suportaria!” Mas por muito tempo, muitos suportaram.

A cor preferida do meu pai era o amarelo. O pigmento da alegria. Como os quinze girassóis de Van Gogh, pendurados na parede de um museu que só conheci alguns anos mais tarde. “Dizem que bebia a tinta dos potes”, alguém comenta em língua estrangeira e sotaque não identificado “pra ver se encontrava felicidade”. Uma coisa engraçada sobre os girassóis é que eles de fato se movem. Dançam desinibidos em busca de um pedaço de luz que os alimente. Quando desenraizados, seguem em decomposição em belos arranjos que fingem lhes manter vivos. Paliativos.

Pra onde vai toda essa energia?

 Eu gostava de acreditar que se inquietava e partia rastreando aqueles a quem se atou durante tanto tempo. Em vida, nas energias que se entrelaçam. Neste ponto, as histórias se misturam.

O luto é um sentimento difícil de elaborar.

Não é o recorte singular de um documentário, as páginas de um livro ou um filme longo demais. É o que acontece enquanto um mundo inteiro desaba e, ainda assim, tudo continua exatamente igual. Não se supera, mas ele se normaliza. Aos poucos, também nos habituamos a ele. O luto é uma certa voz que se esvai, é uma presença que foge. Logo, não sobrará nada dela. Apenas as memórias, como quando cozinhamos o macarrão e lembramos de não colocar óleo. Quando meu filho usa a palavra “grazie”. Ou quando encontramos perdida na gaveta uma receita que decidimos guardar com carinho, embora saibamos que nunca chegaremos a reproduzir.

A morte é a vida em suspensão. Súbita, cancela planos e sonhos.

Nós nos habituamos a ela.

Paris sera toujours Paris

…La plus belle ville du monde.

Um dia depois das eleições, dormi em um trem e acordei em Paris. É a cidade mais linda do mundo. Andei por suas ruas – francesas demais, como tudo parece ser na França; seus prédios planejados alinhados em tons de bege e amarelo claro, como se projetados para ornar com aquele momento preciso, aquele segundo no tempo em que uma certa cor-de-outono se espalha e colore a paisagem em folhas que caem.

Queria eternizar suas cores. Escrevi mesmo sobre elas. Mas na bagagem sobrecarregada que pesava nos ombros, entre mais peças de roupas do que viria a usar, cosméticos demais, dias de menos, escolhi embalar um rolo de filme já meio gasto em preto e branco. Conceitual. E poético. Como Paris.

Não sou expert em fotografia. Talvez devesse ter começado com este disclaimer. Não entendo nada sobre configurações, exceto o que li no manual da câmera semiautomática que um dia foi do meu pai. Ou como virar para a esquerda e para a direita para ajustar o foco, aproximar e afastar a objetiva. Também não li os guias otimizados para mecanismos de busca que ensinavam o básico sobre como fotografar em preto e branco. E, embora tivesse prometido para mim mesma que seria engajada nas composições, não abri uma única vez o medidor de luz instalado no meu celular na noite anterior.

Mas mesmo com todas as negativas, Paris é um golpe de sorte. É tudo à toda hora o tempo todo. Tempo, espaço, memória. Uma imensidão urbana que te leva a transbordar.

Com a cor fora de cena, a cidade-luz tornou-se luz e sombra – ou, na pior das hipóteses, flash. Sua magnitude toda entra em foco: no letreiro brilhante que ganha ares néon no plano monocromático. No pedaço do Sena, capturado do recorte de uma janela de museu. No Sena, ele todo, enquadrado em suas bordas por um monte de folhas. Uma cidade toda baixa, feita de prédios com muitas janelas que nunca chegarão a ser arranha-céu. No Louvre, vazio em um dia de feriado. Na multidão que ocupa a fachada do Orsay, em contrapartida, protagonizando a cena com suas expressões, rostos e corpos em semi-movimento. No homem que divide o espaço da fotografia com a brasserie dos dois museus. Sua veste elegante contra os prédios da esquina. Seu rosto, esquecido no tempo. Tenho certeza de que era belo. Ele talvez peça um café. Para viagem. Nos registros borrados, capturados depois do terceiro pot de vin à partager.

Adicionei à bagagem, já excessiva, dois ilford hp5 preenchidos com a surpresa do inesperado. A maravilha da incerteza das capturas do rolo, fotografado às cegas. Talvez prejudicados pela máquina de raio X na entrada do museu. Ou pelo estranho que atravessou a foto no momento em que o seu dedo apertou o interruptor. Ou talvez essa venha a se tornar a tomada mais interessante do dia. Um efeito fantasmagórico contracenando com um Munch caro demais. Muitos cliques intuitivos que nunca seguiram a máxima pensarduasvezesantesdeapertarobotão. Afinal, em cada clique se gasta dinheiro. E erros custam caro.

Mas nesse jogo de tentativa e erro, nada importa muito.

Car après tout, Paris sera toujours Paris. La plus belle ville du monde.

Um dia, fui mãe.

Uma mãe em algum museu em Londres.

Tem algum tempo que não escrevo sobre maternidade. Este que, por muito tempo, pensei ser o meu único assunto. Estar longe às vezes me parece ter feito perder este direito. Eu não estou lá.

Estou cá. Do outro lado de uma tela onde minha voz não é mais uma voz. É um eco. É o fantasma de uma voz que reverbera sem fim, que falha ante a menor estabilidade, que pode ser desligada. E que às vezes é. Pois eu não estou lá.

Estou cá. Do outro lado do oceano. A oitomilseiscentosevintequilômetros. Estou na sala de um consultório fechado, ouvindo a médica que colocará o meu implante perguntar se tenho filhos. Digo que sim, e a afirmação também ecoa. A ouço agora em sua voz, em outro tom. Aquele de surpresa. Talvez haja algo de estranho sobre uma mulher antes do trinta dizendo que tem filhos neste país. Onde as mulheres na universidade não param para parir. Onde o planejamento familiar é uma realidade e os métodos contraceptivos mais ou menos acessíveis. Onde a mulher sentada na mesa atrás da placa com um Madame que antecede o seu nome não tenha de crispar os lábios para avisar a paciente antes de mim que ela precisará esperar algum tempo para poder se consultar pelo sistema único de saúde, pois a única ginecologista ativa naquela região priorizara o atendimento a mulheres grávidas em vez de àquelas que escolheram não engravidar. O outro talvez tenha ganhado na loteria, porque nos abandonou aqui. Faz meses que não aparece no trabalho. Então é melhor você só deixar pra lá. Em vez disso, pergunto quanto tudo isso vai me custar e ela me responde, como se fosse óbvio, que está tudo segurado. Bom, pelo menos a maior parte. Sessenta e cinco por cento e o resto pela mutelle. Mas esse não é o meu caso.

Deitada em uma maca com a blusa soerguida enquanto uma estranha aperta o meu peito em lugares específicos, me pego contado uma meia-mentira. Ela encandeia muitas outras. Digo que sim quando pergunta se meu filho ficou com o pai, meu ex-cônjuge. Se se relacionam bem. Se nos relacionamos bem. Ela me pergunta se ele vai bem na escola e respondo que é muito inteligente. Essa parte é verdade. Mas intimamente, tento fazer com que as coisas pareçam mais simples do que realmente são. Talvez exista uma parte do meu cérebro que acredita realmente que se eu disser essas coisas, a história seja menos complexa. Melhor digerida. Mais fácil de compartilhar. Desde que não precise entrar nas nuances de um relacionamento frustrado que marcou o início dos meus vinte anos, nos detalhes da nossa irresponsabilidade jovial ou nos malabarismos que fizemos para manter tudo isso nos trilhos enquanto o mundo sacolejava a nossa volta.

Eu não estou lá e não falo sobre isso. Visto minha blusa. Porque é doloroso. Uma pequena mentira. Porque sei que a distância de todo o mar não mudou apenas a minha rotina, mas cortou um laço forjado em cobre no imaginário das relações, sobre o qual vim construindo a maior parte da minha existência. Eu sento na cadeira. Não falo, sobretudo, porque no íntimo, em um lugar secreto atrás de uma porta trancada que não acesso jamais, estou onde deveria estar. Ela me entrega a prescrição impressa em letras serifadas que o farmacêutico não precisará decifrar. A suspensão temporária das responsabilidades. Eu leio com cuidado cada palavra em francês. A elipse da frustração. Pego minha bolsa e me encaminho para a porta. As perspectivas.

– Até a próxima consulta.

Crônica matinal

Todo dia às seis da manhã. O sol batendo tímido lá fora; enche de luz o lado de dentro. O tempo passa diferente nos sonhos, dizem, e nos cochilos até o próximo alarme do modo soneca. Os lençóis são quase magnéticos. Em vinte minutos podemos fazer tudo. Tudo, que é basicamente enfiar, apressados, uma roupa pescoço abaixo, dar um jeito nos cabelos e tentar fazer a criança engolir qualquer coisa antes do horário da escola. Num dia bom, descongelo dois bolinhos de banana, requento um pouco de café passado e amargo; um remédio ruim. Otimizando nosso tempo. Uma mentira que contamos a nós mesmas enquanto rolamos pra baixo o vídeo da influencer da rotina disfuncional que só existe na hashtag. A música instrumental no fundo se perde na realidade, em atrito com os resmungos, chantagens e arrependimentos. Aperto distraidamente o um no micro-ondas enquanto pesquiso modelos de mochilas grandes; a antiga se tornou obsoleta. De repente, meu bebê passou a levar livros com seu nome escrito em uma etiqueta feita por ele mesmo ao lado dos dizeres primeiro-ano-A. Divago de saudade e deixo o café rodando por tempo demais. Uma xícara quente. O líquido fervido esparramado pelo prato de vidro. Um pedaço de papel-toalha que se torna instantaneamente preto. Talvez seja melhor lavar o prato. Dava tempo de fazer um café novo, mas esse vai ter que dar. Dois dedos da bebida superaquecida com gosto de frustração e uma quantidade de cafeína insuficiente pra levar as próximas horas, quem dirá o resto do dia. Eu não tô com fome, ele rebate, e eu cedo. Porque o primeiro bolinho ainda saiu meio congelado. Porque não preciso me dar ao trabalho de pensar em outra coisa. Porque o leite tá caro demais pra ser virado na pia. Porque meu corpo reclama, mas não tenho tempo de ouvi-lo. Queria ser a mãe com o macaquinho fitness na porta da escola, mas saio atrasada, descabelada, esbaforida e usando combinações estranhas. Boaaulanãotiraamáscarateamotchau. Eu volto refazendo o caminho em passos lentos. E tudo outra vez. Todo dia às seis da manhã.

Você deve estar pensando: o que você tem a ver com isso?

Campo e contracampo (Presidente do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand e 11 de junho de 2013), 2017. Acervo MASP. Foto autoral.

No último final de semana, 29, milhares de pessoas saíram às ruas para se manifestar contra o projeto criminoso sustentado pelo governo de Jair Bolsonaro.


Alguns dias depois, o Museu de Arte de São Paulo compartilhou em seu perfil oficial no instagram um retrato feito deste quadro, de Dora Longo Bahia, propondo uma reflexão sobre a importância de levar o entorno para dentro das paredes do museu e como a arte pode representar ou refletir os confrontos e contradições da vida além delas.


A ideia inicial era que os quadros de Dora, exibidos na mostra Avenida Paulista, em 2017, retratassem os presidentes das principais instituições culturais privadas da Avenida – figuras ligadas, também, ao mundo financeiro. No entanto, o caminho percorrido pela artista foi outro, resultando em uma arte que inevitavelmente chama a atenção de quem a vê: no lugar dos retratos, uma tela em branco. No verso, o registro de um – entre tantos – violento embate entre forças policiais e manifestantes. A alusão ao presidente ficou apenas no título, que divide espaço com a data do protesto representado pela artista.


Quando vi este quadro pela primeira vez, no MASP, ele também chamou minha atenção – por ver representada em um museu que visitei algumas vezes uma ação que vi ser reproduzida nas ruas muitas outras. No momento que atravessamos, em meio a uma crise política, sanitária, social e econômica, apesar da qual ainda temos a infelicidade de presenciar artistas, figuras públicas e mesmo pessoas de nosso convívio reivindicando seu direito de não se posicionar, aproveito para compartilhar o meu registro – e a reflexão que o acompanha.


Afinal, até que ponto podemos desligar a política da nossa vida, do nosso trabalho, da nossa produção artística? É possível se isentar diante de tudo o que estamos vivendo?


Lembro quando, em uma discussão sobre Literatura, alguém defendeu a condição do livro enquanto válvula de escape. Concordei parcialmente – afinal, ainda hoje guardo num canto acessível da estante aqueles livros que entretém e aos quais recorro quando preciso espairecer de alguma forma. Mas há, no mesmo espaço, aqueles outros que doem e ferem e tocam e reviram; mas que não podem perder seu posto, porque registram reflexões importantes ou falam de lugares que precisam constantemente ser revisitados.


A arte em suas diversas formas toca as pessoas em lugares sensíveis. Ela acolhe, mas também tem em si a capacidade de criticar. Mais do que isso, tem o dever de fazê-lo. Porque é através dela que interpretamos a vida ao entorno: de maneiras plurais e muitas vezes doloridas, mas necessárias.

A arte é escape, mas também é política.


Porque a política, esta palavrinha de quatro sílabas que tanto assusta a uns e outros, não é um mecanismo restrito a instituições ou homens engravatados e enfadonhos que aparecem de vez em quando em nossas telas com discursos e promessas que jamais serão cumpridas. Ela está em tudo: nas nossas vivências pessoais, nas nossas escolhas, nas opiniões que resolvemos compartilhar e também nas que guardamos.


Do lado de fora das de paredes, vemos reverberar seus ecos. Ela está nas vezes que vamos ao mercado e nos itens que escolhemos colocar em nossas cestas. Está nos nossos empregos, nos contratos que fechamos, na maneira como poupamos ou resolvemos administrar o dinheiro que ganhamos. Ela está no conteúdo que consumimos e no que escolhemos produzir. Está também nas redes, nos contratos exclusivos ou nos grandes patrocínios que as novas profissões da internet reivindicam.


A política é inerente a nossa existência coletiva, mas se reflete também em nossas experiências individuais. Está na saúde, na qualidade dos alimentos que levamos à mesa e no acesso que temos ou não aos hospitais e centros médicos quando precisamos. Está na educação que escolhemos dar aos nossos filhos e na maneira ela dialoga com outros aspectos da sociedade. Criar um filho nesse mundo insano também é um ato político.


Ela está dentro dos museus. Está nos pincéis e tintas, nas palavras e nos roteiros que criamos ou que nos dispomos a interpretar.


E até mesmo quando escolhemos não participar de nenhum tipo de política estamos tomando uma decisão política. Escolher se isentar diante do horror e da barbárie que nos são impostos todos os dias, em diferentes contextos, aprazendo interesses que não são os nossos, é, também, um ato político. É conformar-se com o inaceitável.


Se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor. – Desmond Tutu.


Por isso, a resposta para a nossa pergunta é simples: não podemos. Não podemos nos desligar politicamente de todas as outras coisas. Não podemos nos isentar. Não podemos simplesmente escolher nos alienar. E não porque simplesmente não tenhamos permissão para isso, mas porque é, de fato, impossível que dissociemos nossas experiências e vivências daquilo que é político.


Pensando bem, a quem interessa essa tal neutralidade?


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Torto Arado e as histórias das nossas avós.

      

Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, e café gelado – em alguma altura de fevereiro.

Eu gosto de Literatura, digo. Muitas vezes, no sentido técnico. Na faculdade de Letras, aprendemos a ler de uma perspectiva crítica, discutindo os elementos necessários para compor uma obra, identificando e pormenorizando os detalhes da narrativa.

Mas antes de gostar de Literatura, essa entidade mística em letras capitais que nunca sabemos muito bem definir o todo que engloba, eu gostei de histórias.

Histórias, que habitavam as páginas amareladas dos gibis da Mônica distribuídos nas estantes de metal da escola, ou aquelas escritas por autoras que, sem nunca te olharem nos olhos, te convidavam a mergulhar em mundos – criados por elas, mas de alguma forma igualmente teus. Na aventura das palavras, a imaginação ditava os detalhes: dava face às personagens e forma aos cenários e atos descritos por elas.

Mas além do papel, existiam, ainda, outras histórias: aquelas que talvez nunca tivessem ido parar em uma página, mas que habitavam o imaginário comum de toda uma geração. Ou aquelas, contadas por nossas avós e repetidas tantas vezes que, familiares, pareciam habitar algum lugar do subconsciente. Como se sempre estivessem lá. Como se as conhecêssemos. Como se tivéssemos nós mesmas caminhado pelos caminhos daquelas roças e sujado a barra dos vestidos na terra vermelha, ou provado os saborosos doces de Dona Sara, feitos com frutas que, de muito maduras, despencavam pelo quintal.

Foram as histórias, também, que me ajudaram a atravessar os momentos sombrios da minha vida. Foi a elas que apelei quando precisei compartilhar com meu filho uma notícia triste, guiando-o através dos acontecimentos sem precisar apelar para mentiras ou omissões. Foram elas que me ajudaram a seguir ante a dilacerante dor da perda – não apenas aquelas que evocavam memórias um dia compartilhadas, mas também outras, contadas por aqueles que se foram, que personificavam suas crenças e valores e confortavam o coração daqueles que ficaram, imaginando, de alguma forma, que estariam agora em um lugar melhor.

Quando comecei a ler Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, no começo deste ano turbulento e hostil, sabia que em cada canto da internet poderia encontrar uma resenha de opinião diferente sobre este livro. Não preciso repetir os inúmeros elogios já tecidos a ele, repassar as características técnicas ou boas escolhas estilísticas do autor, que com sua escrita leve e fluída nos guia através de sua própria vivência em contato com comunidades quilombolas baianas. Rico em particularidades e regionalismos, são muitas as semelhanças traçadas entre a escrita de Itamar e os romances da década de 1930 e não seria exagero dizer que sua obra, premiada em diversas ocasiões, já está consolidada em espaços literários plurais, prestigiado em discussões cultas e cotidianas.

Mas para além disso tudo, o que me encantou em Torto Arado foi a familiaridade com que, como leitora, me vi percorrendo cada linha de suas páginas. Estas, entre tramas bem amarradas e boas doses de suspense, evocavam memórias de histórias que uma vez ouvi.

Estas são as histórias contadas por nossas avós.

Histórias que se desdobram para muito além da cosmogonia de uma pequena comunidade baiana – ou mais ao sul de Minas Gerais. E que, permeadas pela fome, pela miséria e pela dor, trazem nas entrelinhas signos de garra, força e sobrevivência.

Torto Arado traz elementos de uma brasilidade enorme. Põe em foco personagens muitas vezes apagados, cujas vidas, ocultas sob a poeira da terra, poucas vezes rendem assunto para romance. Suas histórias, embora muito diferentes, nos soam familiares; evocam outras, vivas pela tradição e pela oralidade, e que apesar dos percalços do duro caminho ainda carregam uma carga enorme de realidade.

Ao abordar o tema da dura vida na roça, Torto Arado rememora muitos episódios de miséria, e de alguma forma, um eco de superação. Histórias sobre patrões injustos e grandes abusos de poder, onde o signo da gratidão deve ser predominante e o questionamento, mudo; ou sobre a alienação do trabalho, a submissão a inúmeras adversidades para sobreviver à desigualdade e pobreza que assolavam comunidades inteiras.

São histórias vividas diariamente. Às vezes, contadas. Outras, muitas, silenciadas.

Torto Arado poderia ser hoje. Poderia ser aqui. Poderia ser agora.

Talvez ainda seja.


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Verdades e mentiras: Vocação para a maternidade e a máxima da boa mãe.

Como muitas mulheres, infla meu ego sempre que ouço alguém dizer que sou boa mãe. Mas bate um aperto no peito quando dizem que tenho vocação para a maternidade. Sou obrigada a discordar. Não tenho vocação para a maternidade: nunca tive muita paciência, casamento e filhos nunca estiveram nos meus planos e ainda hoje valorizo demais meu tempo sozinha.

Afinal, o que é ter vocação para a maternidade?

Jogo essa frase, assim, na barra de pesquisa e recebo como resposta uma série de artigos religiosos e histórias de mulheres que tiveram suas vidas drasticamente mudadas após se tornarem mães. No vernáculo, a palavra vocação é definida como uma inclinação ou talento especial para o exercício de certa profissão ou atividade, como uma tendência natural, e vem, ainda, acompanhada de sinônimos como disposição, pendor e predestinação.

Se repetirmos o processo pesquisando o que é ser uma boa mãe, desconfio que os resultados sejam semelhantes. Entre as muitas linhas e listas apontando aspectos a serem valorizados e exemplos a serem seguidos, crescemos ouvindo que ser mãe (assim mesmo, sem o adjetivo) é amar incondicionalmente. Estar sempre disposta. Sacrificar seu tempo e seu eu em razão de um outro.

A premissa da boa mãe traz em si uma carga pesada.

Mais do que isso, aposta na criação da imagem de uma mulher que nem sempre é possível. Para dar vida a ela, é preciso que a mulher-mãe se apague, que suprima as suas vivências pessoais e os seus traços de personalidade – pelo menos aqueles que não se encaixam na condição identitária a ela reservada. A sublime vocação para a maternidade de repente a coloca no lugar de pecadora, ao mesmo tempo em que exige a sua santidade.

Nos portais de notícias, as imagens sorridentes de mulheres que compartilham seus relatos sobre amamentação, administração e rotina, ou, mais grave, depressão pós-parto, não parecem conectadas à realidade. A boa mãe já nasce do excesso, da culpa não de tudo aquilo que não sabe, mas do que acredita que deveria saber. Afinal, não está nela inscrito o gene da vocação?

Não sou, eu, uma mãe?

A maternidade que escolho exercer está atrelada às minhas escolhas de vida. Não tem como ser diferente. E mesmo estas, devem ser constantemente pensadas e repensadas para que façam sentido diante do ser humano que quero criar para o mundo.

Penso que a maternidade, hoje, é intrínseca à pessoa que me tornei e que vem se construído gradualmente de cinco anos para cá; mas ser uma boa mãe é uma condição que já não me cabe. Prefiro antes ser a mãe que consigo ser: falha, mas real. Nem sempre o modelo pregado pela estética do comercial de cosméticos, mas uma mulher concreta, existente e legítima, com momentos de êxito e de desacerto. Justamente por isso, busco me reinventar todos os dias a fim de suprir as demandas (muitas!) que é criar um filho nesse mundo doido – mas sem deixar de lado minha própria bagagem.


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OSGEMEOS: Segredos

Alguns registros desta experiência mágica, lúdica e cheia de descobertas.

Exposição OSGEMEOS: Segredos, disponível na Pinacoteca de São Paulo

Desde 15 de outubro, a Pinacoteca de São Paulo vem exibindo a exposição OSGEMEOS: Segredos. Em sessões esgotadíssimas na cidade, a mostra mergulha no imaginário da dupla, proporcionando, de maneira dinâmica e intergenérica, o contato com o cultural, o urbano e o onírico.

Percorremos o espaço do museu entre pinturas, instalações imersivas e sonoras, esculturas, desenhos, fotografias e cadernos de anotações. São mais de mil itens, cada um carregado de história. As salas temáticas, além de contarem com o estilo reconhecido mundialmente da dupla, também promovem uma imersão na cultura popular e notavelmente no hip hop, trazendo a influência da dança e da música.

Já escrevi, antes, sobre a experiência de levar Miguel ao museu, mas gosto sempre de observar a sua expressividade diante de tudo aquilo que reflete alguma forma de arte. Na exposição, a abundância de cores e luzes ganhou a atenção da criança, mas sua sala preferida foi aquela que combinava dança e música, onde aproveitou para improvisar uns passinhos.

Em momentos sombrios como o que atravessamos, a arte muitas vezes é uma válvula de escape. Neste sentido, poder entrar em contato com o universo idealizado pelos irmãos nos tira da banalidade da rotina, criando uma atmosfera alegre e contagiante para todos aqueles que a apreciam. É impossível sair sem ser afetado pela exposição.

  • Publicado originalmente no instagram, em 05 de dezembro de 2020.

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