A morte é a vida em suspensão

uma visita ao túmulo de Balzac, no cemitério Père-Lachaise

Um homem morreu enquanto corria. Tinha cinquenta e poucos anos. Deixou a esposa preparando o almoço. Na mesma rua, três vizinhos foram internados. Meu pai era um deles. Era saudável. “Sem comorbidades”. Tinha certeza de que voltaria para casa. Mas não voltou. Um dia depois de sua morte, eu recebi as condolências e alguém enviou um hamburguer para minha casa. Neste dia, 2.286 pessoas morreram de uma doença para a qual existe vacina.

A morte é a vida em suspensão. Falamos muito sobre ela. Histórias como estas são trazidas à mesa nos almoços de domingo por alguém que ouviu dizer. “É fácil reconhecer a família, rostos afobados que saem do carro sem virar a chave”, ela diz, enquanto pega outro pedaço de pão. “A mulher poderia ter envelhecido alguns anos naquele segundo”. A morte virou cotidiano. Nos habituamos a ela.

Alguns anos mais tarde, alguém certamente faria um documentário sobre a pandemia de COVID-19 que assombrou o mundo na década de 2020. O enquadramento da tela mostraria homens de jaleco colocando alguma coisa em um tubo de ensaio. Então, se falaria sobre a corrida das vacinas, talvez sobre o número crescente de mortes ou as declarações infelizes de alguém em um alto cargo do governo. Mas ninguém fala sobre a espera. Sobre os dias que se arrastam e todo esse tempo no meio.

 O assunto é escravidão. Lemos um livro sobre isso. Conhecemos os horrores da época. Mas não estamos lá. O assunto é a peste. Vemos um filme sobre isso. Corpos empilhados no meio da rua. Mas não estamos lá. O assunto é a guerra. Assistimos a um documentário. As ruínas da cidade, os bombardeios, a fome. Mas não estamos lá. Há um abismo entre o que sabemos e o que, de fato, conhecemos. Do conforto de nossos lares, divagamos: “como era possível viver assim? Eu não suportaria!” Mas por muito tempo, muitos suportaram.

A cor preferida do meu pai era o amarelo. O pigmento da alegria. Como os quinze girassóis de Van Gogh, pendurados na parede de um museu que só conheci alguns anos mais tarde. “Dizem que bebia a tinta dos potes”, alguém comenta em língua estrangeira e sotaque não identificado “pra ver se encontrava felicidade”. Uma coisa engraçada sobre os girassóis é que eles de fato se movem. Dançam desinibidos em busca de um pedaço de luz que os alimente. Quando desenraizados, seguem em decomposição em belos arranjos que fingem lhes manter vivos. Paliativos.

Pra onde vai toda essa energia?

 Eu gostava de acreditar que se inquietava e partia rastreando aqueles a quem se atou durante tanto tempo. Em vida, nas energias que se entrelaçam. Neste ponto, as histórias se misturam.

O luto é um sentimento difícil de elaborar.

Não é o recorte singular de um documentário, as páginas de um livro ou um filme longo demais. É o que acontece enquanto um mundo inteiro desaba e, ainda assim, tudo continua exatamente igual. Não se supera, mas ele se normaliza. Aos poucos, também nos habituamos a ele. O luto é uma certa voz que se esvai, é uma presença que foge. Logo, não sobrará nada dela. Apenas as memórias, como quando cozinhamos o macarrão e lembramos de não colocar óleo. Quando meu filho usa a palavra “grazie”. Ou quando encontramos perdida na gaveta uma receita que decidimos guardar com carinho, embora saibamos que nunca chegaremos a reproduzir.

A morte é a vida em suspensão. Súbita, cancela planos e sonhos.

Nós nos habituamos a ela.

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